Voduns, Divindades E Povos Que Se Formam E Se Transformam Às Margens Do Atlântico

Algumas considerações que surgiram a partir da entrevista realizada no episódio “Carnaval é só carnaval?” em que reflexões sobre as religiões afro-brasileiras neste contexto surgiram.

Jayme Filho

9/22/202312 min ler

No episódio “Brasil, o país dos carnavais”, o primeiro da quarta temporada, chamada “Carnaval é só carnaval?”, o Memória Popular Brasileira entrevistou Tiago Melo, que é artista plástico, carnavalesco e tem um trabalho muito belo em que ele reproduziu uma escola de samba em miniatura. Nesta conversa, o Tiago contou histórias de sua vida, de seu trabalho, suas experiências no Brasil e na Argentina. Eis que, em determinado momento, quando Paula e Tiago discutem seus sambas e enredos preferidos, Tiago comenta a respeito de “Agontimé”, da Beija-Flor, em 2001, e este é o gancho por onde início minhas escritas neste blog.

Porém, antes de dar continuidade ao texto, acredito que valha a pena comentar um pouco a respeito do motivo da minha escolha do tema para postagem aqui. Resumindo bastante a história, cheguei ao Memória Popular Brasileira por meio do meu trabalho com a Loja Axé. Afinal, trabalhando com o universo das religiosidades afro-brasileiras, vejo pontos de contato e intersecção com o conteúdo de cultura, memória, história e tudo mais que é tratado no podcast. A Paula até concedeu uma entrevista à Loja Axé falando sobre memória coletiva, esquecimento e resistência, algum tempo depois chegaram em minhas mãos as agendinhas para que eu as representasse em São Paulo e vendas online e de lá pra cá a sinergia tem só se reforçado!

Dito isto, o ponto é: citar Nã Agontimé é citar uma importante raiz Djedje no Brasil. E, esta menção no episódio me provocou a trazer alguma modesta contribuição sobre o assunto. 

A palavra Djedje deriva da palavra iorubá “ajeji”, cujo significado é algo como “estranho, forasteiro, estrangeiro”, forma como os povos iorubás se referiam aos povos euês, habitantes do antigo Reino de Daomé – atual Benim – e adjacências. Portanto, no contexto deste pequeno artigo, podemos entender djedjes (Jejes ou Jêjes, entre outras grafias) como daomeanos ou euês (euésevésewes, entre outras grafias). 

Os jêjes trouxeram ao Brasil o culto aos Voduns. E, no caso de Nã Agontimé, a esta rainha apontam-se hipóteses de que tenha sido a responsável pela fundação da Casa das Minas, em São Luís/MA, um dos principais templos do Brasil. Neste templo, as pessoas adeptas ao Tambor de Mina cultuam os Voduns e fazem diversas celebrações e festividades tradicionais.

Vale ressaltar estudos como os da professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia & Antropologia da UFRJMaria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, que é pesquisadora de festas e rituais da cultura popular contemporânea, dos estudos de folclore e da história da antropologia, das relações entre narrativa, ficção e escrita etnográfica, em seu artigo científico de 2019 intitulado “A Casa das Minas de São Luís do Maranhão e a Saga de Nã Agontimé”, em que narrativas acerca desta relação entre Nã Agontimé são contextualizas com estudos recentes sobre o período da escravidão e como estas ideias se comportam nos estudos acerca das religiões afro-brasileiras.

Além disso, no ano passado, no dia 09 de Dezembro de 2022, na Casa das Minas, foi lançado o livro “Agontimé e sua lenda: Rainha na África, Mãe de Santo no Maranhão”, pela coedição da Pitomba Livros Discos e Editora UEMA.

Convém ressaltar que a publicação sobre o livro no perfil de Instagram da Casa das Minas indica que a renda das vendas será revertida para a instituição religiosa.

“Mina não é etnia de negros e sim uma palavra portuguesa. Antes da ocupação do atual estado das Minas Gerais, esse nome passou a ser um rótulo comercial utilizado pelos traficantes de escravos, atribuído geralmente às etnias sudanesas, para insinuar que aqueles negros entendiam de mineração e metalurgia, o que lhe majorava o preço de mercado.”

Cicero Centriny

Os "minas", a Costa da Mina

Assim Cicero Centriny (nome artístico de Cicero Ribeiro), que é Vodunsu-Ohunjai iniciado no Tambor de Mina pelo Pai Euclides Menezes (Talabyan Lissanon), o babalorixá da Casa Fanthi-Ashanti, e estudioso das religiões de matriz africana, abre seu texto entitulado “Mina não é etnia e, sim, palavra portuguesa”, na Revista Calundu de 2017. Mais adiante, prossegue indicando as origens do termo:

Mina, no Maranhão, deriva de negro mina de São Jorge da Mina, sendo assim, aqui ficou de uma certa forma tudo generalizado como os negros mina.

O culto dos Voduns chega ao Maranhão trazido pelos negros escravizados procedentes do antigo reino do Dahomé (atual Benin), pois a Costa da África Ocidental onde se localizava o referido reino era chamada de Costa dos Escravos e também de Costa da Mina.

Cicero Centriny

E Robin Law, da Universidade de Stirling, em “Ethnicities of enslaved Africans in the Diaspora: on the meanings of ‘Mina’” (“Etnias de africanos na diáspora: novas considerações sobre os significados do termo ‘mina’”), originalmente publicado revista History in Africa, de 2005, aponta em seu texto algumas contribuições a respeito da origem do termo dentre as quais destaca-se a ideia que tem por base estudos de Paul Hair, que inclusive menciona uma transformação da nomenclatura até o termo mais atual do lugar:

Trata-se de palavra portuguesa que, neste contexto, se refere especificamente às minas de ouro. Depois da chegada dos portugueses à Costa do Ouro, em 1471, o nome “Mina” foi logo aplicado à área onde eles negociavam ouro com os povos nativos. Inicialmente, isto acontecia na vila costeira de Sama. Em 1482, entretanto, os portugueses construíram o Forte de São Jorge da Mina, localizado 30 km mais a leste, no local de uma aldeia indígena denominada Edina. A partir de então, o nome “Mina” passou a referir-se a este lugar. A passagem do nome Mina para a atual forma “Elmina” ocorreu durante o período da ocupação holandesa do forte, depois de 1637

Robin Law

Portanto, podemos observar que muitas pessoas que chegaram ao Brasil partiram de um local que hoje se chama Elmina, que é uma cidade em Gana. Convém observar que não necessariamente quem partiu deste local era originário de lá, pois era muito comum que uma pessoa capturada, por exemplo, no Norte, fosse transportada para o Sul do continente e de lá trazida para a América, e vice-versa. Os colonizadores misturaram muito as pessoas capturadas, mesmo em continente africano.

Três nações

Durante a sua participação no podcast, Tiago Mencionou que existem três grandes Nações que compõem as religiões afrobrasileiras, sendo elas: Angola, Jêje e Keto. Para facilitar o que seriam estas Nações, podemos assumir que cada uma delas é um grupo de etnias de uma região da África.

As primeiras pessoas escravizadas que vieram para o Brasil foram os povos Bantu. Estes são provenientes de uma vasta região subsaariana e que toca as costa Oeste e Leste, em Angola e Moçambique respectivamente, por exemplo. São falantes de idiomas como o Quimbundo e o Umbundo, do tronco linguístico Bantu. Estas etnias, quando aqui reunidas, formaram a Nação Angola. Por estarem nestas terras há mais tempo, e terem sido vítimas do tráfico negreiro por muito tempo e em grande quantidade, foram os que mais se misturaram com os povos originários, indígenas de todo esse território continental, além de estarem também submetidos à influencia europeia, evidentemente.

Depois, os colonizadores se voltaram para o antigo Reino do Daomé. Estes trouxeram consigo as raízes da Nação Jêje. O Culto aos Voduns, que embora não seja tão difundido no Brasil, é bastante difundido na América do Norte e América Central, com o Voodoo (Vudu). Não são exatamente as mesmas religiões, mas são as mesmas raízes. Pode-se, inclusive, encontrar estas referências na cultura pop. Infelizmente, em muitos casos de uma forma preconceituosa, estereotipada, mistificada, demonizada… Quem não se lembra dos bonequinhos de vudu que apareciam na TV? Eram bonequinhos confeccionados com a aparência de uma pessoa a quem se desejava fazer o mal. E, ao espetar o barriga, o braço ou qualquer parte do bonequinho, a pessoa que estava sendo representada ali sentiria o golpe em sua barriga, braço ou onde quer que o alfinete tivesse atingido. Talvez, você, seus pais e as crianças da sua família se lembrem de uma clássica frase do desenho Pica-Pau, ou mesmo de cenas do episódio “O Rei do Vudu“. Afinal, o desenho que estreou na televisão brasileira no dia 19 de setembro de 1950 e atravessa gerações. A frase dizia “Vodu é pra jacu”. Então… é deste grupo étnico-religioso que se está fazendo a piada.

Na verdade, tem mais caroço no angu deste desenho. Mas, que, talvez, possamos explorar noutro momento…

Por fim, o terceiro grupo que aqui chegou foram os Iorubás. Oriundos da região onde hoje localiza-se a Nigéria e imediações, este acaba de por exercer uma certa, utilizando a palavra de Beatriz Nascimento em seu documentário Ôrí (1989), “hegemonia”. Reginaldo Prandi, em seu livro “Os Candomblés de São Paulo” aponta evidências bastante interessantes de como a classe média dos anos 60 e 70 “galvanizou” o Ketu como referência. Muito resumidamente, tem a ver com uma busca pela construção de uma certa brasilidade, uma identidade nacional, além da aderência de figuras famosas da época como Jorge Amado, Dorival Caimmy, Elis Regina, Vinícius de Moraes, Baden Powell entre outras. Dois trechos do livro ilustram bem este momento do “nagocentrismo”, a valer:

Pica-Pau – Vudo é pra Jacu – Trecho do episódio o “O Rei do Vudu”

São os anos da contracultura, da recuperação do exótico, do diferente, do original. A juventude ocidental ilustrada rebela-se, toma gosto pelas civilizações orientais, seus mistérios transcendentais e ocultistas (lembremo-nos dos Beatles e da peregrinação da juventude americana e européia em busca dos gurus do Himalaia). valoriza-se a cultura do outro. No Brasil, a cultura indígena. A antropologia redimensiona a etnografia para fazer política indigenista. E a cultura do negro. A sociedade sai em busca de suas raízes. É preciso voltar para a Bahia — “por que não?” —, acampar em Arembepe. Abrir as portas da percepção, ir em busca do prazer, da expansão da sensibilidade, de gratificações imediatas para o corpo e para a mente.

Reginaldo Prandi

E em outro trecho:

Essa legitimidade de elementos de uma cultura negra, ou de origem africana, cujo celeiro mais importante é a Bahia, essa legitimação da “raiz”, gestada pela classe média intelectualizada do Rio e de São Paulo, que adota os artistas e intelectuais baianos, inclusive, propaga-se pela mídia eletrônica e chega a todas as classes sociais, também entre os pobres, que não viviam esse desejo de retorno e rebeldia que atracou no Porto da Barra, subiu a ladeira do Gantois na Federação e se embrenhou pelo Matatu de Brotas. E se alastrou inclusive entre umbandistas, que com esforço buscavam desde muito apagar justamente essa origem não-branca de sua religião, essa Bahia, essa África. No imaginário desse crente, que é pobre, o orixá “original”, cantado e cortejado por aquele que é mais rico, mais escolarizado, famoso e mais bem sucedido na vida, esse orixá cultuado à moda “antiga”, à moda dos candomblés, vai se revelando mais forte, mais rico, mais “autêntico”, mais poderoso. Esse mesmo crente umbandista que viu tantos de seus sonhos fracassarem, muitos deles anunciados pela sua religião, ainda é um homem de fé.

Reginaldo Prandi

A propósito, a forma “nagô”, se popularizou pois os franceses chamavam de forma generalizada os africanos falantes do iorubá. Embora “Ànàgó” seja um grupo dentre outros do Ketu.

Encontros

Falar sobre todas estas coisas me faz tangenciar um outro assunto: sincretismo. É um assunto bastante complexo, mas que vale a pena trazer à baila também. E, para facilitar, vou entender, nesta conversa, o sincretismo como o encontro entre culturas.

Geralmente, no meio religioso, é comum pensar o sincretismo como uma simples correspondência entre elementos de religiões distintas. Por exemplo, no Catolicismo existe Deus, como ser supremo, e intercedendo pela humanidade os Santos. No Candomblé, a figura suprema é Olorum e, intercedendo pela humanidade, os Orixás. Outro exemplo, que podemos encontrar é mesmo entre Santos e Orixás. Santa Bárbara, uma Santa associada à tempestade é associada à Orixá Oyá, que dentre outras atribuições, é também associada às tempestades. É uma forma um tanto imediatista, eu diria, considerando a profusão de informações que muitas pessoas – não todas, eu sei – possuem para considerar algumas pequenas semelhanças e desconsiderar muitas diferenças que acabam sendo elementos que constroem identidades.

Em muitas Umbandas (mas, não somente!) estas associações são bastante comuns. Não é difícil, em um terreiro de Umbanda, apontarem para imagem de Jesus e chamarem de Oxalá, ou de São Jorge, em algumas regiões do país, chamarem de Ogum, e São Sebastião, também em algumas regiões do país, chamarem de Oxóssi.

Na Bahia é São Jorge
No Rio, São Sebastião
Oxóssi é quem manda
Nas bandas do meu coração

“Oxóssi”, de Roque Ferreira

Contudo, se formos até uma igreja católica e perguntarmos “Qual desses é Ogum? Iemanjá? Xangô? Exu?”, será que o padre vai apontar para alguma estátua de algum santo? A esta relação, que não ocorre de forma igualitária entre as duas vias, podemos chamar de “sincretismo assimétrico”. E, convém ressaltar, não objetivo fazer juízo de valor. Além de que, os motivos pelos quais isso acontece são diversos e bastante complexos, por isso não serão abordados aqui. Isso, sem contar a questão dos fenótipos escolhidos para representar as divindades afrincanas…

Entretanto, como mencionei anteriormente, o sincretismo é o encontro! E as nações se encontram aqui no Brasil. Iniciamos tratando do Culto aos Voduns, da Nação Jêje. Que é pouco difundida no Brasil, então, pedindo uma licença para tentar facilitar compreensão para quem nunca, ou pouco, ouviu falar de Voduns e fazendo uma associação com o Ketu, podemos imaginar que os Voduns são como os Orixás. Existe um Orixá da criação e este é Oxalá. Existe um Vodum da criação e se chama Lissá. Assim como na Nação Angola existe Lembá, que, neste caso, não é Orixá, pois estes são do pateão Ketu; nem Vodum, pois estes são do panteão Jêje. No Candomblé Angola são cultuados Nkisis.

Portanto, há também sincretismo entre as nações do Candomblé. Não somente nas associações entre os panteões, como nas formas de culto, nas palavras utilizadas e muito mais. Inclusive, de fusões entre estas naçõestradições inúmeras indígenas, da culturas européias e até muçulmanas que surgiram diversas e diversas tradições e religiões no Brasil. Religiões, festejos, cultos, rituais, crenças, tradições!

Enquanto eu escrevia este texto, tive que parar para ir para meu compromisso religioso. E lá ocorreu algo que, pra mim, é muito simbólico porque conjumina com esta parte do texto que eu já queria escrever. Veja só: eu frequento uma casa de Candomblé Angola e naquele dia cantamos uma música cujo sentido é algo uma reverência de Exu (Ketu) sendo feita à Leguá (Jêje). Simples e também figura bem o sagrado transitando e se encontrando. 

Ou seja, se observarmos bem, o sincretismo que, para ilustrar neste texto tratei como os “encontros”, tem tipos, formas e efeitos distintos. E, na Casa das Minas é bem possível perceber esta amálgama de saberesSérgio Ferretti, em seu livro “Repensando o Sincretismo” estudo profundamente a Casa das Minas. E trouxe também grandes estudos a respeito do sincretismo.

Por fim, já que estamos falando de Benin (antigo Reino de Daomé) e de Brasil, eu gostaria só de fazer uma breve menção à memória brasileira em Benin! Algumas das pessoas pessoas que vieram da África para o Brasil puderam retornar e levaram consigo uma forte memória do Brasil para Benin e na região, são os “Agudás”.

Este povo de descendentes de brasileiros até hoje vive uma cultura que é voltada para o Brasil em termos de famílias, costumes, arquitetura, e festividades como o – adivinhe só – carnaval! Neste ponto, depois de toda esta conversa, arrisco uma resposta para a pergunta tema da quarta temporada do Memória popular Brasileira: Carnaval não é só carnaval!

E, aproveitando o ensejo, vale um trecho do samba-enredo composto para a Sociedade Beneficente Copacabana, de Porto Alegre/RS, desfilar no Carnaval 2023:

Livro "Repensando o Sincretismo", de Sérgio Ferretti

Livro "Repensando o Sincretismo", de Sérgio FerrettiLivro "Repensando o Sincretismo", de Sérgio Ferretti

Raiz Brasil

Com o Brasil no coração
Miscigenando a cultura
E celebrando o final da escravidão
Quem trouxe samba de lá, levou samba de cá
Retornando às suas raízes
Vai ter batuque e xirê dos Orixás
Cumpriu-se a missão, Obatalá!

“Agudás: Ideias de Liberdade da Negritude Sacodem a Bom Jesus e o Porto Seco”, de Lucas Donato, Roberto Nascimento, Andy Lee e Victor Nascimento

E, para encerrar, a quem desejar conhecer um pouquinho mais sobre este povo que mantém fortes laços com o Brasil, recomendo uma relíquia de Milton Guran, o livro “Agudás. Os Brasileiros De Benin”, repleto de belas de fotografias tiradas pelo antropólogo.

Espero que gostem do conteúdo, aproveitem as dicas e indicações e que possamos trocar ideias e saberes. Compartilhem, comentem! Suas ideias, impressões, correções, dúvidas tornam o trabalho da Memória Popular Brasileira cada vez melhor! E assim nos beneficiamos em conjunto destas conversas.

Axé pra nós!

Livro "Agudás. Os 'brasileiros'do Benim", de Milton GuranLivro "Agudás. Os 'brasileiros'do Benim", de Milton Guran

Livro "Agudás. Os 'brasileiros' do Benim" ", de Milton Guran